Nebulosa Cabeça de Cavalo, vista pelo telescópio Hubble. |
O que segue pode ser lido e entendido por qualquer um que o queira. Mas é especialmente dirigido aos que participaram de nosso encontro de estudos do dia 17 de dezembro passado.
Todos enfrentamos o conflito interno entre como somos em nossas vidas e como gostaríamos que tudo fosse.
O que a prática de Kriya Yoga propõe é um processo de depuração da nossa consciência para que encontremos o ponto equilibrado em que nos tornamos plenos dentro de nós e em nossas vidas e finalmente livres desse conflito. Isso se dá através de um método que equilibra respiração, batimento cardíaco, magnetismo do sistema nervoso, metabolismo, pensamento, psique e instâncias ainda mais elevadas e menos conhecidas daquilo que traduz o nosso eu, em tempo e espaço.
Kriya Yoga é Yoga na sua fonte original e não deve ser confundido com o que é chamado popularmente de Yôga, ginásticas de alongamentos que nasceram modernamente de um dos desdobramentos do Yoga Clássico, o Hatha Yoga. Essas ginásticas são práticas físicas, em alguns casos penosas, com objetivos mais voltados ao bem estar e beleza materiais. Não raramente alguns professores dessas práticas misturam em suas aulas interpretações apressadas e superficiais de escrituras védicas com citações de auto-ajuda e modismos new-age, aumentando ainda mais a confusão para quem quer saber o que é realmente Yoga. Desde que praticada com um professor responsável e sem excessos de narcisismo, essas ginásticas podem sim trazer benefícios, do mesmo modo que Pilates ou Tai Chi. Mas não são Yoga em sua raiz, apenas um seu reflexo, um de seus muitos galhos.
Kriya Yoga é Yoga em sua acepção original: Um sistema filosófico psicossomático que desencarcera purusha de seu entrelaçamento nesta prakrti.
E o que querem dizer essas palavras sânscritas, purusha e prakrti?
Traduzir sânscrito é impossível. Não existem palavras equivalentes na maioria dos idiomas e não raramente um bom dicionário sânscrito irá trazer muitas dezenas de possíveis traduções para uma única palavra. Há teóricos linguistas que afirmam tratar-se de um idioma morto, que ninguém mais fala. O que nós estudamos em nossa tradição da linhagem Kriya iniciada por nosso professor Lahiri Mahasaya em meados do século XIX, é que o sânscrito nunca foi falado para assuntos triviais. Em nenhum momento do passado alguém foi até o mercado comprar cocada, em sânscrito. Nem ninguém nunca fez fofocas sobre o vizinho ou comentou o resultado do campeonato, em sânscrito*1. Mais que uma linguagem litúrgica, é um idioma para tratar de assuntos espirituais ou filosóficos e para entender seu significado é necessário elevar o padrão da inteligência. Altas ondas, nem todos surfam.
O conceito não é inédito. Anos atrás, estudando a etnia indígena Mebêngôkre, aprendi que entre eles existe a extratificação do conhecimento através da linguagem. E uma das formas de linguagem, a mais refinada, de conhecimento espiritual, era restrita a conversas em voz baixa, no seio da noite, na boca dos anciãos.
Então o que podemos fazer quando tentamos traduzir sânscrito, por exemplo, para o português, é conhecermos as inúmeras traduções aproximativas. Mas sem a experiência da consciência yogue, isso sempre será muito pouco e, quando muito, apenas isso: uma aproximação.
Antevista a dificuldade, voltamos a Purusha e Prakrti.
Prakrti (ou Prakriti) pode ser entendido como Natureza Material, como os elementos constituintes do Universo, a natureza ou forma original de qualquer coisa, o padrão fundamental, o força de vontade investida de existência, o mundo material, etc.
Purusha é o Ser Cósmico, o Ser Original, o Eu Universal, a fonte original do Universo, o primeiro ser, o homem original, a testemunha de Prakrti, etc.
Poderia se dizer que Prakrti é a matéria e Purusha o espírito. Mas se dissermos assim poderíamos reforçar a falsa ideia de cisão entre matéria e espírito. E não se trata disso, pois Prakrti sustenta Purusha. E Purusha determina Prakrti.
Não existe dualidade Prakrti-Purusha. Não se tratam de opostos. É a mesma Natureza que originando a si mesma, se faz adormecida para poder despertar.
Retomando o estudo do dia 17 de dezembro passado e a interpretação metafórica de Baba Hariharananda para a Batalha de Kurukshetra, entre dois exércitos. As duas forças pertencem à mesma família (são da mesma origem, mesma raiz). Mas uma delas, os Pandavas, representa o corpo espiritual. A outra, os Kauravas, o corpo biológico. A tensão que escala o conflito e coloca os regimentos em oposição é fruto do desejo dos Kauravas em assumir completamente o controle, associado ao esquecimento dos Pandavas de sua condição original. Os Pandavas deixaram se enredar no complicado jogo dos Kauravas e perderam a própria direção.
Em outras palavras, não se trata de uma dualidade maniqueísta, colocando de um lado o ignorante e perverso corpo biológico e do outro o bom e sábio corpo espiritual. Esta seria uma maneira bem empobrecida e perversa de entender o esplendoroso jogo da existência. Mas sim, existe um mesmo corpo que se expressa biológica e espiritualmente. E a tendência do corpo biológico, quando o corpo espiritual está confundido, é seguir seus impulsos biológicos cegamente. Mas se a luz espiritual está desperta e consciente da Existência Pura, sem precisar se deixar levar pelos flutuantes estados da mente, então os corpos se alinham, e a natureza do corpo biológico se torna a mesma natureza do corpo espiritual. Cessa o conflito.
Trata-se do quarto estado da Consciência descrito no Maanduukya Upanishad, Turiiya, pura consciência da fonte original, distinto dos outros três, acordado, sonhando, em sono profundo.
Voltando ao Gita e à Batalha e à interpretação de Hariharanandaji, no verso 3 do Capítulo Um, o próprio comando do corpo biológico tem a consciência de que em uma batalha entre a luz e a escuridão, a escuridão desaparecerá quando a luz acender. É inevitável. Entre virtudes e vícios, só existe vício onde não está a virtude. E a virtude não se impõe através do vício do orgulho, do discurso e do falso conhecimento. Ela desabrocha como uma flor quando se concentram as qualidades espirituais luminosas. E esse é o papel da Yoga em nosso corpo biológico: a partir do centro luminoso e elevado que acalma e pacifica nossa natureza material, fazer nascer a consciência das qualidades de luz, som e vibração que permitem emergir nossa fonte Amorosa, Mãe de todas as virtudes, nosso Ser Original em seu intelecto claro e perfeito.
Não é exclusividade dos Vedas essa interpretação filosófica. Quando se fala nos testamentos judaico-cristãos em Natureza Divina e Natureza Decaída, trata-se de uma mesma Natureza que carrega em si o potencial permanente do Despertar e Renascer para o Amor Original. A Natureza é uma só. Não está em oposição a nada, mas apenas aguardando o momento em que você irá se curvar amorosamente ao Coração do Oceano de Luz, eternamente grato pelo milagre da existência.
Com Amor,
Yogacharya Céu
*1: Há uma tentativa moderna de se instituir o Sânscrito como idioma do cotidiano em um dos estados da Índia, Uttarakhand (a.k.a. Uttaranchal). Mas isso implica em simplificar e reduzir o próprio significado da linguagem. Será sempre uma adaptação e não mesmo a fala em seu significado original.