- Um polêmico conto
germânico do século XV.
- O mito do
viveram felizes para sempre.
- Instituição
x Verdade.
- Sinceridade.
No fim de semana de 27 e 28 de Maio de 2017, o grupo
de São Paulo reuniu-se em um sítio para um Retiro de Aprofundamento em Kriya
Yoga. O tema de estudo: "O Amor é o mais importante."
O que segue é a segunda parte do textobase que foi
desenvolvido nesse retiro:
Na noite do primeiro dia, nos
reunimos ao redor de uma fogueira, para ouvir uma história.
Há muitas histórias que nos fazem
refletir sobre o que é o Amor. Eu optei por uma que desafiasse o que tínhamos
estudado até ali e colocasse uma perspectiva diferente. Muitas vezes é
importante desaprender o que virou clichê na nossa cabeça. Tirar as teias de
aranha das certezas.
Mas talvez eu tenha exagerado na dose. Algumas reações foram além do que eu
esperava. Eu primeiro vou contar a história. Depois, explico:
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A Penitência de São João Crisóstomo (por Lucas Cranach, o Velho, circa séc.XV-XVI) |
Este antigo conto germânico, do século XV, é uma
versão folclórica medieval da vida de São
João Crisóstomo. Se o conto já tem quase 500 anos, o santo é ainda mais
antigo: Foi bispo nos primeiros tempos do Cristianismo, tendo nascido na
Antioquia cerca de 345 d.C.
A História
de João Boca de Ouro*
O conto, estranho e fantástico,
diz que houve em Roma um Papa que gostava de viajar com seus cavaleiros. Em uma
dessas viagens o Papa afastou-se do grupo e cavalgou, lenta e solitariamente,
para um local ermo, afim de fazer suas preces. No silêncio solitário escutou um
lamento. Uma voz infeliz se lamuriava. O Papa procurou pelo dono da voz, mas
não viu ninguém. A voz continuava a chorar e se lamentar, mas nada se via.
O Papa pensou que se tratava de
um fantasma e disse em voz alta:
- Você, quem chora! Em nome de Deus me diga
quem é!
A voz, dolorosamente respondeu:
- Sou uma alma miserável e amaldiçoada,
sofrendo nas chamas do inferno...
O Papa ficou com pena do infeliz
e perguntou se havia algo que podia fazer para ajudá-lo.
- Nada
pode fazer! Foi a resposta. - Mas em
Roma há um homem muito bom, casado com uma mulher cheia de virtude. Em breve
eles terão um filho, que se chamará João. Crescerá um homem abençoado e se
tornará sacerdote. Se ele rezar dezesseis missas em minha intenção, serei enfim
libertado das chamas do sofrimento. Em seguida o fantasma deu detalhes de
como encontrar o casal de pais. E depois de um longo urro que gelou o sangue do
Papa, desapareceu.
De volta a Roma o Papa procurou
pessoalmente o piedoso casal. De fato esperavam o nascimento de uma criança.
Concordaram em receber a proteção do Papa. Quando a criança nasceu, foi levada
até ele, que a batizou João.
Considerado pelo Papa como um
filho, aos sete anos João foi para a escola. Mas o menino tinha muita
dificuldade com os estudos e logo tornou-se alvo de chacotas dos colegas. Sentia-se
envergonhado e triste. Assim que, a cada manhã, passou a rezar diante do altar
de Nossa Senhora. Um dia, para sua surpresa, a imagem esculpida falou: - João, beija minha boca. Beija-me e se
tornará o mais sábio homem da terra, mestre de todas as artes. Com medo e tremendo, o menino fez o que
a imagem pediu.
No mesmo dia, na escola, via-se a
volta de sua boca um círculo dourado de luz brilhante. E sua inteligência
desabrochou assombrosamente. Tudo ele respondia, tudo ele sabia. A partir desse
dia passou a ser o professor da escola e recebeu o apelido de João Boca de
Ouro.
O Papa, sempre lembrando da alma
sofredora que encontrara anos antes, fez com que João fosse ordenado sacerdote
o mais cedo possível. O rapaz
celebrou sua primeira missa mal completos dezesseis anos. Mas dentro de si João
estava desconfortável diante de Deus. Achava-se jovem demais e despreparado.
Decidiu que assim que terminasse o banquete em sua homenagem, logo depois da
missa, deixaria toda aquela riqueza material, para se tornar um eremita pobre
vivendo no ermo.
E assim fez. Apos receber as
honrarias e felicitações e depois que os convidados foram embora, partiu
escondido, vestido com trapos e levando apenas um pedaço de pão. Quando o Papa
deu conta do sumiço do jovem prodígio, deu ordem de busca. Mas em vão. Ninguém
encontrou o paradeiro de João, que instalou-se em um local escondido e deserto,
na floresta, a beira de um abismo. Vivia em uma casa feita de cascas de
árvores, comia raízes e ervas. Jejuava, orava e mantinha-se desperto, em busca
da revelação.
Não muito longe dali, estava o
castelo do Imperador. Um dia, a princesa, filha do monarca, estava colhendo
flores, quando um forte tufão soprou subitamente. Ela e suas amigas foram
levantadas pelo vento. Mas quando o vento passou, a princesa estava
desaparecida. A guarda imperial a procurou incansavelmente, sem sucesso,
abatendo de tristeza o Imperador.
De fato o vento levara a jovem
donzela até a porta da cabana de João. Assustada, mas sem nenhum ferimento, a
princesa ajoelhou diante da casinha e pôs-se a rezar, acalmando-se. O rapaz ouviu a voz e veio ver o que
era. Alarmou-se diante da beleza. Mas a jovem suplicou para que ele a
abrigasse, argumentando que poderia morrer de fome ou ser atacada pelos animais
da floresta. João cedeu e a admitiu em sua pobre casinha de um só cômodo.
João riscou uma linha no chão de
terra da cabana, dividindo-a em duas partes iguais. Os dois passaram a viver
juntos, mas sem se tocarem. Igualmente alimentavam-se de ervas e raízes,
jejuavam e oravam. Mas crescia o desejo entre os dois e, depois de um certo
tempo, João cedeu e entregaram-se ao prazer do corpo. E depois João caiu em
arrependimento.
O arrependimento transformou-se
em fúria. Empurrando a moça para que se afastasse, acidentalmente jogou-a no
abismo que ladeava a casinha. No mesmo instante percebeu que acabara cometendo
um erro muito mais grave. Gritou de dor e arrependimento: - Matei uma moça inocente!
João saiu correndo pela floresta,
desesperado e aos prantos: - Senhor Meu
Deus, por que me abandonou? Gritava. Então decidiu ir até Roma para se
confessar na igreja. Coincidentemente foi o Papa, seu padrinho, quem recebeu
sua confissão. Separados pela cortina do anonimato, os dois não se
reconheceram. Ao ouvir o que João fizera, o Papa não aceitou o arrependimento: - Suma daqui! O que você fez não pode ser
perdoado. Você é um animal selvagem!
João voltou a sua cabana.
Pensava: - Não duvidarei da misericórdia
de Deus, que é maior do que qualquer pecado. Prometo caminhar de quatro, como
um animal, até que Deus me de a graça do seu perdão. E inclinou-se no chão
e passou a viver assim. Passaram-se os anos e João nunca mais se levantou. Suas
roupas apodreceram, seus cabelos e pelos cobriam a pele suja e áspera. Não
parecia mais um ser humano.
Enquanto isso, em Roma, a esposa
do Imperador deu a luz a uma nova criança. O Papa foi chamado para batizá-la.
No momento em que tomou o bebê nos braços, todos em volta ficaram assombrados,
porque o recém nascido falou. E suas palavras foram: - Não é você quem pode me batizar! Eu só serei batizado pelo Santo
João, que virá da floresta, enviado por Deus. A criança foi devolvida imediatamente
aos braços da ama de leite. Aturdido, o Papa perguntava a todos se sabiam onde
estava esse tal santo João, mas ninguém sabia responder.
Por esses dias, os caçadores
imperiais capturaram um estranho animal. Como o animal não tentou fugir e nem
opôs resistência, foi trazido vivo
para o castelo. Solto no pátio, para que todos pudessem vê-lo, escondeu-se
embaixo dos bancos. Uma multidão de curiosos cercou-o e tentavam empurrá-lo com
varas e lanças, para que pudesse ser visto. Entre os curiosos estava a ama de
leite, segurando o bebê do Imperador. E novamente, para o grande espanto dos
que estavam presentes, o recém nascido falou: - Levanta, João! E venha me dar o batismo!
Novo espanto. O estranho animal
no chão levantou a cabeça e todos viram que era a de um ser humano. E disse: - Se o que diz é verdade, e se essa é a
vontade de Deus, fale novamente.
E o pequeno bebê repetiu: - João, meu amado! Sinta a alegria e a
misericórdia divina, porque Deus perdoou os seus pecados. Levanta e venha me
dar o batismo! E João colocou-se em pé. No mesmo instante toda a sujeira
tombou do seu corpo como se fossem cascas. Limpo e iluminado, João foi vestido
ao mesmo tempo em que batizava o infante.
Levado ao Papa e ao Imperador,
não foi reconhecido como o João que partira anos antes. Mas exalava tanta paz e
luminosidade, que foi recebido como um santo rei. Ouviram sua história e
passaram a saber quem era. Mas ao Imperador restou o lamento. Chorou por sua
pobre filha e pediu a João que o levasse até o local do acidente. Pensava que
poderia recolher os ossos da falecida e dar-lhe ao menos um sepultamento.
João levou o Imperador e seu séquito
até o despenhadeiro, local de sua antiga choupana. E quando debruçaram-se
diante do abismo, mais uma surpresa assombrosa: Lá estava a princesa, envolta
em luzes, viva e com a mesma beleza que tinha quando sumiu no dia do vento. – Os anjos me sustentaram! Disse ela,
como se o tempo não tivesse passado. – O
que esperam para me tirar daqui?
Todos voltaram para Roma. O
imperador e sua esposa abraçados à princesa e agradecendo a Deus por mais
aquele milagre. O Papa por sua vez, indagou João:
- João, quantas missas celebrou?
- Apenas uma. Aquela primeira. Respondeu
- Meu Deus, a alma ainda o espera! Replicou o Papa. E explicou tudo que
acontecera, anos antes ainda do
nascimento de João.
Durante os quinze dias seguintes,
João conduziu as missas restantes, libertando a alma misteriosa de sua pena. Os
anos passaram, João tornou-se bispo e suas palavras eram recebidas como bênçãos
na forma de uma chuva de ouro. E quando escrevia e a tinta acabava, molhava a
pena nos lábios e escrevia palavras de ouro. E assim, como na infância, voltou
a ser chamado de João Boca de Ouro.
Fim da história.
(* A História de João Boca de Ouro pode ser encontrada, com mais
detalhes, no livro “A Conquista Psicológica do Mal”, de Heinrich Zimmer,
compilado por Joseph Campbell )
Ao terminar de contar a história,
perguntei aos participantes do retiro o que achavam. Havia um certo sentimento
de perplexidade e até incômodo.
Houve quem questionou o exagero
de João. Para que se sentir tão culpado pelo desejo sexual. Por que não aceitou
seu envolvimento com a princesa como amor, largou os dogmatismos da igreja e
casou-se com ela.
E talvez pudessem viver felizes
para sempre?
Será que é esse nosso real
entendimento de amor, então?
Quando instigados a pensar no
amor, produzimos conceitos filosóficos muito elegantes e belos. Mas quando
chacoalhamos um pouco nossa memória, o que acaba vindo a tona é nosso desejo de
viver um romance de conto de fada (com um pouco de erotismo, que ninguém é de
ferro)?
Bem, nesse momento do retiro
comecei a me perguntar se eu conseguiria realmente transmitir o que pretendia.
De fato, no final do retiro, percebi claramente que não. Mas vamos ver um pouco
melhor uma possível interpretação desse antigo conto, quase medieval:
Seria pouco inteligente discutir
se os fatos dessa história são verdadeiros, parcialmente ou completamente
imaginados. Ainda que eu mesmo tenha testemunhado que a ordem esperada da
realidade possa ser alterada, os chamados milagres, não é isso que me importa
neste conto. O que podemos aproveitar desse tipo de fábula sobrenatural, é o
desafio ao entendimento de nossos próprios valores. O questionamento que
podemos fazer sobre os alicerces de nossas crenças e a possibilidade de nos
encontrarmos com o entendimento de seus símbolos como portas para nossa própria
realização. As metáforas do inconsciente, que se manifestam em sonhos, contos
populares e arte, são (algumas vezes) pistas para nossa libertação.
O contexto histórico dessa
história é: Germânia (Alemanha) no século XV. Está se vivendo o início da Reforma. É a época de Lutero e
dos questionamentos sobre a autoridade do Papa e da Igreja Católica. Além disso
evoca a figura de São João Crisóstomo, que no século IV foi um bispo que
desafiou muitas vezes a instituição papal, para ficar do lado do povo humilde. O
conto não desrespeita o Papa, mas o apresenta como um homem que, ainda que bom
e compassivo, não alcança a dimensão espiritual da autêntica santidade. O conto
revela logo no início uma forte reverência à adoração de Nossa Senhora,
representada por uma imagem
*2
. Portanto tem raízes católicas e não adotou os
dogmas do protestantismo. Mas questiona a instituição religiosa, representada
pelo Papa, em contrapartida à autentica santidade, representada por São João. É
um conto popular que anuncia, naquela época, o esvaziamento da crença na Igreja
institucional, e a busca de uma autenticidade espiritual, em algum lugar mais
verdadeiro e próximo das raízes.
E aqui está o ponto que realmente
me fez contar esta história: A busca espiritual vai além das convenções
institucionais. Muito importante: Para se encontrar a Verdade, o Amor que
liberta, não se pode temer rever as regras que impõe obediência cega.
Não importa a ideologia ou a
crença religiosa: o dogmatismo sempre aparece quando as pessoas se reúnem e
começam a criar regras. É bom que as pessoas possam se organizar para fazerem o
bem, para invocarem o Amor. Mas é preciso estar alerta para que a organização
não se torne mais importante que o Amor. O Amor é o mais importante.
Uma das coisas que chama a
atenção na história de João Boca de Ouro é que, apesar de suas limitações, sua
dificuldade em estudar, seu destempero que acaba empurrando a moça para o
despenhadeiro, existe algo dentro dele que o guia. Sua realização já estava
traçada desde antes do nascimento: Até no Inferno ele era esperado para trazer
a libertação. Mas ele ainda não estava livre quando nasceu. Ainda não tinha
encontrado dentro de si a criança divina que o chamaria para revelar a si
mesmo. E essa criança, por força de seu empenho em encontrar a Verdade, acaba
falando pela boca de uma outra, para que ele possa finalmente estar em pé,
coluna ereta, pronto para fazer o que cumpre-se que se faça através dele.
Sim, quando ele é menino, por
força da inocência, revela por um tempo a sua identidade: é a primeira aparição
de João Boca de Ouro, o menino ignorante que subitamente se torna um professor.
Mas a adolescência lhe traz o corpo adulto e os hormônios. Como lidar com as
próprias paixões, com o desejo, com a raiva, a sensação de impotência e o
sentimento de culpa? Ele busca o caminho institucional: a confissão e o perdão
do padre no confessionário. Mas nem o próprio Papa, que também é seu padrinho é
capaz de libertá-lo. Ele precisa se curvar e buscar dentro de si. Há porém algo
que não se curva: a convicção que a Misericórdia, que não é outra coisa senão o
Amor Divino, é maior do que qualquer erro, do que qualquer pecado.
- A qualidade número um do buscador espiritual é a sinceridade, diz Baba
Hariharananda. Isso não significa ser bruto ou inconveniente com os outros.
Podemos desenvolver a paciência e o respeito com os outros, mas sempre sendo
sinceros com nós mesmos. A sinceridade e franqueza é consigo mesmo. Quem
realmente quer encontrar a realização do Amor e da Verdade espiritual, não pode
se enganar.
Precisa admitir para si mesmo o
que realmente está pensando, sentindo, entendendo, e quais são suas dúvidas. Trata-se
de uma permanente e profunda investigação interior. Não pode aceitar meias
verdades, que são meias mentiras, com a desculpa de estar “bem” com uma
situação que na verdade nem entende e nem aceita. Admitir as próprias
limitações. Não idolatrar pessoas. Não ser hipócrita.
Entende por que escolhi essa
história? Há que se buscar dentro de si, sinceramente, o Amor, se quiser
entender o que realmente é a Meditação e a prática de Kriya Yoga: - O Amor é o mais importante.
Há que se tomar cuidado com as
instituições. Cuidado para não transformar sua prática de Kriya Yoga em uma
adoração institucional aos gurus, aos livros, à técnica, às palavras. É
fundamental não transformar a prática da meditação em um culto ao próprio ego:
- Eu sou mais importante, porque medito. Eu sou mais importante porque sigo o
Guru X, ou o Mestre Z. Ou sou mais
importante porque sou um inteligente ateu, ou um inteligente qualquer outra
coisa. Não é nem a instituição e nem você que são o mais importante para a
realização na meditação. O A-M-O-R é o
mais importante.
Certamente um dos pontos em que as
pessoas se confundem nesse conto, é a repulsa de João ao sexo. Nos faz pensar
nos dogmas ultrapassados de religiões que condenam o prazer sexual, ou que o
consideram pecaminoso. Mas vou deixar para tratar desse assunto na próxima
parte desta série.
Na noite em que estudamos essa
história, antes de nos recolhermos para o sono, uma das participantes propôs
que uma dança circular em volta da fogueira. Foi bem legal. Minha cabeça
descansou um pouco. Mas comecei eu mesmo a perceber que não estava à altura da
tarefa que tinha me proposto. Eu ainda não tinha em mim consciência suficiente
do Amor, para poder compartilhá-la. Ainda estava me escorando demais em
palavras e conceitos.
Yogacharya Céu, São Paulo, maio-agosto 2017
(*2 Barbara Lein, nossa amiga de meditação, me escreve assinalando
que a rejeição à Virgem Maria, pelo protestantismo, é um fenômeno mais recente,
e que não condiz com o pensamento de Martinho Lutero. Nos enviou este link que
sugiro que também leiam: Lutero, os Reformadores e Nossa Senhora )